Comprei ingresso para assistir ao concerto da
Osesp e tive uma sorte grande na hora da compra: tinha um lugar, central, na
plateia elevada da Sala São Paulo. Nem acreditava que teria uma visão bem
privilegiada. Não quis chamar ninguém para ir comigo. Prefiro contemplar a
música clássica curtindo a solitude. Só fiquei um pouco tenso com o ingresso,
que chegou apenas um dia antes data do concerto.
Saí um pouco mais cedo para poder tomar uma ducha
e me arrumar. Me colei e sai para pegar um táxi, próximo a meu apê. O taxista
era um daqueles velhos chatos que mais rulminam do que falam. Pegou a Duque de
Caxias, mas ficou do lado direito da avenida. Por um lado foi bom pois do lado
esquerdo tinha um congestionamento. Porém, ele precisou me deixar do outro lado
da calçada da Sala São Paulo (táxi – R$10,50, mas paguei R$10). Aí tive que me
atirar na avenida para os carros pararem, para poder atravessar. Já estava um
pouco irritado porque já estava suando devido ao calor. E não havia uma maldito
ar condicionado no carro daquele velho com lábio leporino. Estava com uma
bolsinha para guardar celular e carteira, essas bem de menininhas (risos).
Cheguei na entrada e pedi informação ao segurança sobre onde entrar e ele com
um olhar desconfiado, deu a resposta me orientando a entrar e virar à esquerda.
E a Sala São Paulo, como sempre imponente, impecável e de brilhante
arquitetura.
Passei batido pelo café e fui em direção à
livraria. E do nada vem aquela vontade desenfreada de comprar. Me atentei à
biografia de Gustav Mahler e perguntei ao vendedor se ele tinha a biografia de
Tchaikovsky que estou há séculos querendo comprar. Ele prontamente me mostrou o
livro com uma foto linda de Piotr. E muito bem produzido: livro de capa dura,
belo prefácio, uma beleza minimalista na contra capa, elementos que se utilizam
da sedução para você se tentar a comprá-lo. Quando esquivo meu olhar em outra
direção, outra tentação babilônica: o livro Alucinações Musicais, de Oliver
Sacks. Mas segurei a onda, afinal de contas, não queria ficar com as mãos
ocupadas.
O segundo sinal soou e fui me recolher em meu
assento. Nem acreditava na visão que eu tinha. Olhei para o lado e vi uma
senhora com o programa. E eu que não queria ocupar minhas mãos, indaguei em
minha sã consciência: “Cadê o programa”? Fui correndo comprar um. Deu tempo de
voltar a meu lugar e ainda dar uma lida na vida de Richard Strauss. O bacana de
ver a orquestra executar as obras de dois grandes e distintos compositores da
música clássica é que há um fio condutor na execução dessas peças: ambas
retratam o herói romântico. E ver duas formas brilhantes e diferentes de
execução sobre o destemido herói é uma oportunidade rara, que não dá para
desperdiçar.
Antes de dar início na apresentação, o maestro
Fabio Mechetti saiu um pouco do roteiro, executando com a Osesp uma obra de
Camargo Guarnieri em homenagem ao povo de Mariana com aquela tragédia terrível
do rompimento criminoso da barragem. E que até agora não há punição dura aos
responsáveis, leia-se Vale e Samarco. Que Deus nos proteja. Feita a devida
homenagem, só me restava fechar os olhos...e meditar.
Na primeira parte do concerto, uma obra baseada
no incestuoso poema “Manfred”, de Lord Byron. Fiquei imaginando como deveria
estar o estado de Schumann quando ele terminou de criar essa divindade sonora.
Enquanto escutava atentamente o ecoar de cada instrumento entrando em minha
audição, me veio à mente lembranças da minha infância, do quanto era duro
sobreviver numa época de tamanha recessão. E esse herói romântico na visão de
Schumann mostrando em cada acorde melancolia e serenidade. Fiquei com o corpo
relaxado e a alma mansa. Intervalo para o café.
Na segunda parte do programa, pensei, enquanto
tentava chegar ao meu lugar e com uma manca na minha frente. Fiquei me
questionando se a calmaria proposta por Schumann fosse proposital a orquestra
apresentar, como uma espécie de estratégia. Pois minha intuição não falhou.
Apesar de ser mais conhecido pelas suas óperas,
sempre polêmicas e muito reconhecidas, Richard Strauss costuma proporcionar momentos
de catarses, dada à sua forma inusitada intempestiva de compor. Strauss compôs
o poema sinfônico “Uma vida de herói”, uma purgação desesperadora que mostra
toda a vulnerabilidade e instabilidade do herói, visto pelo compositor. Foram 45
minutos de pura tensão. Não foi à toa que decidiram deixar Strauss por último.
É uma obra difícil de degustar. Tanto que houve uma pequena evasão no início da
obra. A audição teve a participação do violonista alemão Daniel Müller-Schott,
um jovem muito talentoso e promissor. Assim que o concerto acabou, senti minhas
costas contraídas, de tanta tensão que Strauss me deixou. Vi ligações de alguns
queridos. Juçara tinha me ligado. De táxi até chegar em casa para retornar os
telefonemas.