Depois de algumas semanas mantendo a vibe pós-férias, achei que estava mais
do que na hora de me inquietar um pouco. E nada mais propício do que aproveitar
o roteiro cultural para algo mais...cirúrgico. Juçara tinha sugerido para que
eu fosse assistir “A pele de Vênus”, do Roman Polanski. E Polanski sabe como
ninguém incomodar o espectador. Liguei
para Clau para combinarmos em assistir e marcamos nos encontrar para a sessão
das 21h30 no Reserva Cultural, apesar de eu detestar a sala de exibição de lá.
O áudio é muito comprimido, fica muito abafado de se escutar o filme. Mas pela
falta de opção, decidimos fazer o sacrifício de ir no Reserva. Como só nos
veríamos à noite, me programei para fazer algo durante o dia e na procura por
algo que me instigasse, escolhi dentre as opções que marquei no Guia da Folha em
ver a produção chilena “O Clube”. Tudo bem de ser cinema também, assim eu
aproveitei para colocar a o roteiro cinéfilo em dia. E para meu azar, só havia
sessões no Reserva Cultural. O sacrifício nesse dia foi em dobro.
Cheguei 40 minutos antes para garantir o
ingresso. E pra variar, o preço dos ingressos continua bem salgado. Peguei meu
ticket e fui tomar café na boulangerie do
Reserva. Os atendentes são até educados, mas muito lentos. Fora que você fica
no balcão aguardando seu pedido e assistindo de camarote a troca de farpas
entre eles. Pura commedia dell arte
tupiniquim. Peguei meu pão de queijo e expresso e me sentei para observar a
fauna em minha volta. É triste você se deparar com o mal gosto das pessoas para
se portar de forma tão deselegante. Elas falam alto, quase gritando, sem
necessidade de você se exaltar, afinal de contas o espaço da boulangerie é pequeno e eu não sou
obrigado a ficar ouvindo mediocridades da modernidade tardia. E o figurino,
então? A mulherada toda desfilando, umas parecendo que estavam no tapete
vermelho do Oscar, o que acho over demais para ver “apenas” uma sessão de
cinema. E outras pareciam que estavam vestidas para ir a um frigorífico. E tem
gente que ainda tem esperança na evolução humana. Pit stop para o toilette.
Entrei na sala, direto para meu assento. Tenho o
hábito de comprar sempre na quina, no canto das fileiras. A sala estava com um
público considerável. Pelo que percebi olhando para a cara de alguns, estavam
no pique de se torturarem um pouco.
E o filme começa dando a sensação de que não
pretende criar nenhuma sensação de alívio para nós, estranhos “pacientes” à
procura de um antidoto. O diretor, Pablo Larraín, afiado com seu bisturi,
dissecou a vida de seus personagens sem direito a qualquer justificativa para a
penitência de suas ações. A trama se passa num vilarejo ao sul do Chile, numa
comunidade totalmente jogada e excluída do mapa, de sua existência. E é nesse
vilarejo que convivem alguns padres em um casarão antigo, sob o zelo de Irmã
Mônica. Apesar de não se ter ideia do que pode vir a acontecer, o diretor
deixou pistas para termos uma noção do que aguardar. Para que eu
chegasse à conclusão do desprezo impresso a essa comunidade, a fotografia do
filme ajudou bastante a revelar o que o enredo da história iria oferecer. O
tempo nublado ampliou o tom cinzento e sombrio utilizado na composição fotográfica
da trama. Aos poucos, foram apresentados os padres com suas aparências
rancorosas, amargas e sem perspectiva alguma de vida. E a cirurgia veio logo no
início do filme, quando chega um outro padre para se juntar ao grupo. No momento que
estão conversando, eles escutam um homem do lado de fora aos gritos, proferindo
algumas obscenidades envolvendo o padre que acabara de chegar. Com receio do
casarão ser invadido, um dos padres já residente oferece uma arma (aqui a
primeira questão: por que haveria uma arma com o grupo de padres no casarão?).
O novo hóspede pega a arma e sai para fora, ao encontro do missiva. E algo
inusitado acontece. A cirurgia pedida no começo desse texto veio mais cedo do
que eu queria.
Com o acontecido que eu não irei falar, o
espectador começa a descobrir as histórias que envolvem a vida de todos os
padres e da freira zelosa, através de outro padre, do tipo Inquisidor da
idade Média, que chega ao casarão para descobrir sobre o ocorrido e, sempre
desconfiado, acaba fazendo uma investigação com todo o grupo. Foi uma bela sacada do diretor em colocar um ator lindo, daqueles que
chamam a atenção, para fazer o papel do Inquisidor. Percebi que o diretor quis criar uma relação
de proximidade entre o inquisidor e nós, reles mortais
espectadores. E o resultado deu certo: à medida que o inquisidor ganhava espaço
na trama, criava-se uma intimidade a ponto de acompanharmos juntos, na condição
de meros ajudantes do terapeuta mor da Inquisição, a descoberta do real motivo
que levou o grupo de padres a se isolar nesse vilarejo. Foi como você tomar
um comprimido e ele entalar em sua garganta. O bom roteiro também ofereceu pequenas
subtramas no enredo para exercitar o lado negro da força de sadismo do diretor.
Com o final do filme, as pessoas saíam da sala
sem dar um pio. Saí com o corpo doído, tenso, por culpa do padre inquisidor
galã, que me fez cair propositalmente nas suas garras para que eu o
acompanhasse em suas intervenções cirúrgicas. Mérito do roteiro bem elaborado,
do elenco bem entrosado e da direção minuciosa de Pablo Larraín, um jovem
extremamente inquieto e provocador. Pra quem dirigiu filmes como “No”, de 2012,
onde se cutucava com varas curtas a ditadura de Pinochet, merece toda a minha
atenção e desejo de uma carreria promissora.
Depois dessa jaca caída em minha cabeça, decidi
ir almoçar, refrescar a cabeça e guardar as energias para a próxima imersão: “A
pele de Vênus”, de Roman Polanski. Acho que vou precisar de uma dose cavalar de
Floral para aguentar.